Ceará deve quadruplicar geração de energia limpa com hidrogênio: ‘Potencial surpreendente’ – Negócios
Um dos estados pioneiros na geração de energia eólica no Brasil, o Ceará tem um potencial inegável para a geração renovável. Há mais de 500 empreendimentos autorizados a operar pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aguardando construção.
A capacidade deve ser aproveitada pelo futuro mercado de hidrogênio verde, que irá demandar o crescimento exponencial dos parques solares e eólicos. A acelerada expansão levanta questões, entretanto, sobre os riscos da indústria intensiva ao meio-ambiente.
O hidrogênio verde é uma das maiores apostas globais no movimento de transição energética. Ele pode ser a chave para descarbonizar a indústria, que já utiliza hidrogênio originado de fontes poluentes. A expectativa é que o vetor energético também se desenvolva para ser utilizado como combustível para carros, aviões e até navios.
Mas para ser verde, a energia utilizada na produção do hidrogênio deve ser renovável — de recursos inesgotáveis e sem grandes danos ao meio-ambiente. O Ceará chama atenção por esse potencial: da capacidade instalada do Estado, enquanto a energia solar equivale a 22,55%.
Com a necessidade crescente das empresas que devem chegar ao Ceará, a capacidade de energia limpa do Estado deve crescer em torno de 21 GW nos próximos anos, mais de quatro vezes a capacidade em operação atual. A projeção é de Constantino Frate, coordenador do Núcleo de Energia da Federação das Indústrias do Ceará (Fiec).
O potencial de geração de energia renovável, bem como os projetos já autorizados no Estado, são surpreendentes. Os projetos de Hidrogênio Verde em desenvolvimento nos colocarão na vanguarda deste novo vetor, que contribuirá de forma impactante na transformação da economia do Estado”
As previsões de crescimento da matriz cearense podem esbarrar em problemas de infraestrutura da rede elétrica brasileira, alerta Francisco Silva, Diretor Técnico Regulatório da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeolica).
O executivo aponta que o Ceará e o Rio Grande do Norte têm sido os mais afetados pelos cortes na geração de energia determinados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), tendo em vista dificuldades no sistema.
“Existe o risco de o empreendedor não aceitar tomar o risco de transmissão, que hoje está na mão dele. Esses projetos estão ameaçados em função de problemas na transmissão”, afirma. Esse foi um dos motivos, inclusive, que levou o Estado a perder posições no ranking de geração de energia eólica do País.
Francisco aponta que o aumento da capacidade das linhas de transmissão está seguindo o ritmo esperado, mas defende um reajuste na regulação do mercado elétrico para que as usinas renováveis possam operar integralmente.
“Em termos de número de projetos, se todos saíssem do papel, o Ceará seria o segundo maior estado do Brasil Os projetos são muito competitivos. O Ceará, assim como boa parte do Nordeste, tem todas as condições de retomar os primeiros lugares na produção de energia eólica”, avalia.
O COMBUSTÍVEL DO FUTURO NO CEARÁ
O Ceará deve atrair investimentos na ordem de R$ 168,9 bilhões para a construção de empreendimentos de hidrogênio verde até 2031, aponta estudo conduzido pela consultoria norte-americana IXL Center, contratado pelo Governo do Ceará e pela Federação da Indústria do Ceará (Fiec).
A previsão é que empresas e órgãos governamentais invistam US$ 30 bilhões para instalar plantas de hidrogênio verde com capacidade de até 11 GW. Também deve haver investimentos locais de cerca de R$ 3,42 bilhões em infraestrutura para consolidação do hub de hidrogênio verde.
A expectativa é que a cadeia estimule diversos setores produtivos. O setor da construção, por exemplo, deve receber investimentos de US$ 12 bilhões nos próximos anos. Já no setor metalmecânico, as cifras devem ser de US$ 6 bilhões.
O hub do hidrogênio verde deve criar cerca de 10 mil empregos diretos no Estado, além de 25 mil cargos indiretos. A chance de o Ceará se tornar um líder global dessa indústria não tem como base apenas a capacidade de energia renovável.
O Estado foi pioneiro a criar uma governança atrativa a esses investimentos e adaptar a infraestrutura, destaca Fernanda Delgado, diretora-executiva da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV).
“Lá atrás, quando a gente começou a falar de hidrogênio verde no Brasil, quando se falava de transportar para Alemanha e Europa, o Porto do Pecém vislumbrou isso como grande oportunidade e consolidou um arcabouço de oportunidade. Há todo um dimensionamento de área pronta, infraestrutura, o acordo com o Porto de Rotterdam [maior porto marítimo da Europa] para criar um corredor verde”, comenta.
Diante desse cenário, o primeiro grande projeto em escala comercial do Brasil deve ser inaugurado no Ceará. A expectativa é que as plantas comecem a ser construídas em 2027.
A empresa com planos mais avançados é a gigante australiana Fortescue, que tomou decisão antecipada de investimento para planta bilionária no Pecém e autorizou a terraplanagem de seu terreno.
Grande parte das empresas ainda aguardam o delineamento do marco regulatório da produção de hidrogênio de baixo carbono no Brasil, sancionado no Ceará em agosto. Devem ser definidas regras para a concessão dos R$ 18,3 bilhões em créditos tributários.
Agora é o momento de instrumentar a lei para que ela traga os maiores benefícios para o País. Que seja exequível pela indústria e seja o melhor aproveitamento dos recursos públicos”
“Tem empresas que já se adiantaram à regulamentação e estão fazendo os seus anúncios, mas por certo existe a necessidade de que se tenha a pavimentação dessa regulamentação para que as empresas anunciem a decisão final de investimento”, explica.
PROTAGONISMO DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA CEARENSE
Embora a futura indústria do hidrogênio verde esteja sempre atrelada a companhias multinacionais que trarão operação para o Estado, também deve nascer no Ceará tecnologias próprias para a produção do combustível.
Um dos projetos da Rede de Pesquisa e Inovação em Energias Renováveis do Ceará (Rede Verdes), que reúne diferentes instituições do Estado, visa desenvolver novos materiais catalisadores para a produção do hidrogênio.
O objetivo é substituir os metais utilizados na eletrólise da água – processo de separação da molécula de H2O para obter o hidrogênio. Os pesquisadores avaliam a troca do ouro e da platina por novos materiais, como revestimentos porosos de ferro e nitrato.
Pedro Lima, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, aponta que a substituição pode reduzir a quantidade energia elétrica necessária e melhorar a eficiência do processo.
“A nossa meta é desenvolver tecnologia com novos materiais que possam ser utilizados como cátodos e ânodos em eletrolisadoras, em substituição aos metais nobres para produzir hidrogênio verde com redução de energia elétrica e, consequentemente, redução dos custos associados a produção de H2V”, comenta.
O pesquisador afirma que há um grande potencial para que pesquisas em andamento gerem futuras patentes e sejam adquiridas por empresas nacionais e multinacionais. Ele afirma que, com a continuidade dos recursos financeiros de estudos, o Estado tem amplas condições para continuar o protagonismo em energias renováveis.
As pesquisas com hidrogênio no estado do Ceará não iniciaram mais recentemente. Entretanto, devido à falta de recursos, algumas pesquisas estavam paradas até o ano de 2017, quando começou a ter o interesse das agências de fomento pela produção de H2V a partir da eletrólise da água”
Um dos investimentos em qualificação profissional garantidos para o Ceará é a construção do primeiro campus avançado do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) do Nordeste. A unidade de Fortaleza deve ser inaugurada em 2027 e abrigará o novo curso de Engenharia das Energias Renováveis, além de Engenharia de Sistemas.
EÓLICAS OFFSHORE: AVANÇO CONTROVERSO
Uma das novas formas de geração de energia que deve impulsionar a matriz renovável é a produção eólica no mar, ou offshore.
Com velocidade do vento mínima de 7 m/s, o Ceará é o segundo estado com maior interesse das empresas do setor. O Estado tem um potencial de 117 GW nessa forma de energia, ainda maior que os 98 GW de potencial eólico em terra.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) recebeu 25 pedidos de licenciamento de projetos offshore no Ceará, totalizando capacidade de 64 GW em. O número é quase um terço do total de pedidos do Brasil.
O primeiro projeto a ter o licenciamento solicitado foi da Neoenergia, uma das empresas líderes do setor elétrico brasileiro, que assinou memorando de entendimento com o Governo do Ceará. A empresa tem intenção de instalar uma usina com potência total de 3.000 MW.
A escolha do Ceará entre os estados do Nordeste foi embasada na oferta de recursos naturais e também nos possíveis clientes, explica Marcelo Lopes, diretor de Hidráulica & Offshore Renováveis.
“É indiscutível o potencial eólico que o estado do Ceará tem, além da localização privilegiada e o potencial do hidrogênio verde. O estado vem desenvolvendo muito junto ao Pecém a questão do hidrogênio. Cada região tem sua particularidade, não só em termos de recursos, mas também em termos de infraestrutura portuária e centro de consumo”, aponta.
A instalação das usinas em alto mar ainda depende de regulamentação no Brasil. Um projeto de lei está em tramitação no Senado Federal, mas teve a discussão travada após adicionarem benefícios a contratação de usinas térmicas a gás e manutenção de térmicas a carvão – fontes de energia não renováveis.
Apenas no Ceará, os projetos enviados ao IBAMA ocupam 17.280 km², havendo até sobreposição entre alguns. A possível ocupação intensiva levanta uma discussão sobre o impacto socioambiental.
Um levantamento do Observatório da Energia Eólica identificou que pelo menos 324 comunidades tradicionais do litoral cearense podem ser impactadas com a instalação das usinas marítimas, como indígenas, quilombolas e pescadores artesanais.
O temor que é as turbinas em alto mar formem um ‘barreira’, inviabilizando o trabalho das colônias de pesca que atuam com embarcações movidas a vento. Adryane Gorayeb, pesquisadora do observatório, avalia que deve haver impactos à subsistência dessas comunidades e à economia dos municípios litorâneos.
“Nós fizemos o levantamento de mais de 2.200 embarcações a vela em todos os 600 quilômetros de litoral, mais de 250 pesqueiros ao longo da costa. Existem estimativas de que 70% do pescado que a gente consome em Fortaleza vem do pescado artesanal, é muito importante em termos econômicos e de segurança alimentar.
Há ainda possíveis danos à fauna e à circulação oceânica devido às mudanças na turbidez e na vibração das águas, além da formação de campos eletromagnéticos pelas torres eólicas, que não foram estimados. “Não existe nenhum estudo sistemático oceanográfico que indique os potencias impactos, as melhores medidas mitigadoras e quais os sistemas seriam mais impactadas”, lamenta a pesquisadora.
EFICIÊNCIA DA MATRIZ SOLAR DEVE CRESCER COM NOVOS PAINÉIS
Para atingir uma matriz elétrica 100% renovável, além de novas usinas eólicas, o Ceará também deve investir em fortalecer a geração de energia solar fotovoltaica. Melhorar a eficiência dos painéis solares utilizados no Estado é um dos caminhos para isso e alvo de pesquisas cearenses.
Uma das pesquisas no arcabouço da Rede Verdes busca desenvolver novos materiais que possam ser aplicados na fabricação das placas solares. O silício dos equipamentos deve ser substituído por materiais híbridos- produzidos em laboratório a partir de fibras de vidro – aumentando a eficiência das placas e até a vida útil.
“Se a gente comparar a velocidade de eficiência, a gente tem uma velocidade média três vezes maior que o silício. Hoje a gente já tem eficiência 5% acima do silício, com preço quinze vezes menor”, explica Pedro Dieric, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo.
A expectativa é que a eficiência cresça ainda mais com os anos. Além disso, a principal vantagem é a possibilidade de produzir o material no Ceará, diferentemente das placas de silício, que têm tecnologia patenteada e produção concentrada por países asiáticos.
O desafio atual dos cientistas é tornar o material estável, para que as células solares tenham vida útil igual ou maior que as convencionais, segundo Dieric.
“O Ceará pode se destacar porque vai substituir uma tecnologia já estabelecida que não pertence ao Brasil por uma tecnologia nossa, que vai trazer todas as divisas para o Brasil, com produção no Estado”, projeta o especialista.
A previsão é que as primeiras placas solares a base do novo material estejam disponíveis comercialmente em cerca de sete anos. O estudo ganhou escala recentemente, ao integrar a Rede Verdes, e deve começar aplicações práticas em grandes painéis em breve.
“Hoje temos uma única empresa que começou a produção desse material na forma comercial, ainda apresenta diversas limitações. Então a gente está nesse páreo de aplicar esses materiais, que desenvolvemos muito bem aqui no Ceará. Começamos um pouco atrasados, mas começamos bem”, comenta.
Uma expansão adequada do parque renovável depende, entretanto, de formas de armazenar a energia gerada. É o que explica o professor Fernando Antunes, mestre em Engenharia Elétrica.
O ‘estoque’ pode ser mantido através de baterias, usinas reversíveis ou até mesmo na forma de hidrogênio verde. O País ainda não tem regulamentação para o uso desses sistemas, uma queixa antiga do setor elétrico.
“Deve-se armazenar, não apenas para garantir energia elétrica em horas noturnas, mas também garantir um sistema elétrico estável, tecnicamente falando. Armazenar energia renovável é essencial para atender às intermitências do sistema elétrico, a utilização da nova indústria de veículos elétricos”, aponta Antunes.